vida ou verdade?

— Mas o senhor já pagou tudo isso com seus sofrimentos! Ana, Svetomir e eu estamos planejando sua fuga, senão seus inimigos o matarão.
Huss balançou a cabeça negativamente.
— Agradeço a dedicação, meus filhos. Saibam que mesmo que as portas da prisão estivessem abertas — mesmo assim, eu não sairia enquanto não me justificasse diante de todos. Nunca vou trair a verdade para salvar o meu desprezível corpo e não darei aos meus irmãos um mau exemplo fugindo diante do perigo. O que faria depois com a minha vida manchada, desonrada e inútil?
...
Evitando olhar para a cruel multidão que exigia que ele fosse colocado de frente para o ocidente — pois, conforme diziam, um herege não pode olhar para o oriente —, Huss olhou para o céu e o seu olhar, de repente, acendeu-se de radiante felicidade.
Por cima da fogueira ele viu a grandiosa imagem do primeiro mestre da Boêmia; seus profundos e severos olhos olhavam o mártir com amor e, com a cruz que segurava na mão, ele apontava para o céu.
Absorto pela visão, Huss não percebia que havia sido rodeado pela lenha até o pescoço. De repente, a voz de alguém arrancou-o do esquecimento.
Era o grande marechal do Império, conde Pappenheim, que chegara, em nome de Sigismundo, tentando pela última vez convencê-lo a renunciar para salvar a vida.
— Para que o senhor vem constranger a grande paz da minha alma? A nada tenho que renunciar, pois nunca professei nem ensinei as heresias de que me acusaram mentirosamente. Ficarei feliz em marcar com o próprio sangue a verdades evangélicas que ensinei oralmente e por escrito. — Respondeu Huss, com brandura mas firmemente.
Ana acompanhava a execução com os olhos bem abertos e o corpo inteiro tremendo; quando o fogo começou a crepitar, ela balançou e fechou os olhos. Svetomir, imaginando que ela iria desmaiar, abraçou-a para que não caísse. Ana, entretanto, já estava refeita e, com o olhar brilhando febrilmente, olhava para a fogueira quando, naquele instante, ouviu-se das chamas uma voz sonora cantando uma oração. Aquele canto, em meio ao horrível sofrimento, anunciando a vitória do espírito sobre a carne, agiu de forma deprimente sobre a multidão, que estancou, muda de surpresa. Os olhares de todos estavam fixos sobre a coluna de fumaça e fogo de onde não se ouviam nem gemidos, nem lamentos, nem gritos. Somente a melódica invocação ao Pai celestial.
De repente, a voz do mártir calou-se — a fumaça soprou sobre o seu rosto. Durante um certo tempo dava para ver que seus lábios se mexiam, em seguida a cabeça pendeu sem vida.

(J. W. Rochester. Os Luminares Tchecos. [psicograf. por] W.Krijanowskaia, [trad. por] Victor Selim, Catanduva: Boa Nova, 2000, — 3a ed. —p. 414; 427-8)

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